COMO ERA A VIDA CRISTÃ NOS PRIMEIROS ANOS NA IGREJA PRIMITIVA

Geralmente se ouvem pregações desafiando à igreja de hoje a viver com marcas do século primeiro. Mas muito somente ficam  olhando o texto de Atos e da vida em comunidade. É necessário conhecer um pouco mais da história da igreja.


Precisamos do texto de Atos mas precisamos olhar um pouco mais na história 

  1. Primeiro século

a) Decálogo.  "A Palavra de Deus",  é "a norma de fé e prática" para cristãos (Conf. Neerl. 7; Conf Westm. 1:2). Obedecer ao Senhor é a maior bênção, o desviar-se d’Ele a maior maldição. 


Entretanto, é igualmente claro que nem sempre as prescrições do Senhor são muito específicas, e são mais ordens gerais. Assim, sobre a pauta da "Expansão" podíamos ter  o mandamento missionário, o "Ide" (Mc 16:15), mas somente de vez em quando o Espírito Santo dá indicações específicas  onde temos de ir (At 8:26; 16:6,7). Sobre a pauta de "Organização" podíamos ter  "Ordem" (1Co 14:40), mas é claro que por outro lado há muita liberdade no achar soluções para problemas práticos que surgem na igreja.


Da mesma forma, sobre a pauta "Vida" podíamos escrever "Amor" lembrando-nos do grande mandamento (Mt 22:36-40; Ro 13:10); por outro lado é igualmente claro que o Senhor não nos diz o que temos de fazer em casos específicos e, ainda, que de fato há coisas que, em si, não são bons nem ruins. Este é o setor dos "adiáfora", das coisas opcionais, mas sempre orientadas pelo amor. 


b) Ágape. Este amor, especialmente na diaconia, dos cristãos dos primeiros séculos foi observado pelo mundo (Mt 5:16), até por Celso, um dos inimigos declarados (+180). A vida familiar dos seguidores de Jesus era diferente. Na sociedade, o evangelho enfatizou que todos somos somente mordomos das nossas propriedades e que os necessitados precisam de ajuda. Na capital do império, por volta de 250AD, a igreja deve ter cuidado de uns 1.500 pobres! E o mundo observou: "Como eles amam uns aos outros". Na sociedade havia muitos escravos que na igreja foram tratados como irmãos, iguais em Cristo. A mensagem da igreja não era dirigida tanto a instituições, mas sim a homens e mulheres, cada um na sua própria vocação, e lá, servindo ao Senhor, eles deviam ser uma luz e um sal. A “ágape”,  uma refeição comunitária (não sendo a Céia do Senhor), enfatizava a fraternidade, mas foi abolida pouco a pouco (+200) devido ao abuso.   


c) Judeus e gentios. A vontade do Senhor é a mesma para judeus e gentios. Inicialmente, o grande grupo de conversos sabia muito bem o que Deus queria, porque eram pessoas educadas na sinagoga, judeus e prosélitos, que conheciam o Decálogo. A norma era clara e as admoestações eram feitas na base do mandamento divino. Conheciam a vontade revelada, mas nem sempre obedeciam, como mostra a história de Ananias e Safira (At 5:1-11). Surge a pergunta porque o Senhor castigou-os tão severamente. Creio que foi um caso paralelo na história primitiva do povo da Aliança antiga: na rebelião de Coré cs (cum suis, com os seus) o Senhor quase está dizendo: "Assim Eu devia agir quando transgridirem a minha vontade". Era uma disciplina instantânea e uma advertência severa, pois judeus messiânicos sabiam o que Deus queria.


Mas os pagãos? Por um lado "a norma da lei" geral estava gravada nos seus corações e o indicador no painel das suas consciências oscilava entre os dois polos, + e - (Rm 2:15). Por outro lado precisavam muito de orientação explícita. Assim, aparecem sempre nas cartas apostólicas grandes trechos sobre ética aplicando o princípio do amor a situações concretas (como o matrimônio, etc. em Ef  5:21-6:9), como o Senhor tinha dado muitas ordens e proibições específicas no Velho Testamento. Crentes jovens carecem e querem este tipo de orientação, pois sentem um desejo profundo de fazer a vontade do Senhor (Sl 40: 8; Rm 8:4). Por outro lado correm o perigo de cair no erro do legalismo.


d) Legalismo judaizante. O legalismo judaizante era uma ameaça real na igreja primitiva. Em primeiro lugar no campo dos judeus convertidos. Para eles o evangelho era que o rabino Jesus de Nazaré, crucificado mas ressurreto, foi apontado por Deus como o Messias, em quem as promessas antigas se cumpriram (At 2:22,36; Rm 3:2). Esses judeus messiânicos se alegravam sobremaneira, mas por isso não abandonavam os costumes antigos fundados na lei litúrgica de Moisés (At 2:46). Que essa lei tinha sido cumprida no sentido de abolida, pela morte do Cordeiro de Deus (Jo 1:29; Mt 28:51; Hb 10:20) não era uma conclusão tão fácil. O Senhor não lhes proibiu de observar a lei ceremonial (At 16:3; 21:17-26), mas mostrou-lhes que aquela época da sombra havia passado. Foi ao póprio líder da igreja-mãe que deu uma visão a respeito disto, no sentido de entender que havia cessado a distinção da lei litúrgica em animais puros e imundos, em povos puros e imundos (At 10:15; 11:17). Mas para muitos era difícil de entender isto, pois não era Deus mesmo que tinha dado a lei mosaica? Então, de certo não era assim, e teríam de exigir dos gentios que eles guardassem essa lei santa como os prosélitos, e o primeiro passo seria sempre receber o sinal da aliança, a circuncisão. Pois para eles o guardar da lei ceremonial não era somente uma coisa secundária, mas essencial para a salvação (At 15:1). 


Foi a esse tipo de sotereologia legalista que a conferência em Jerusalem (50AD) disse "Não", até por orientação do segundo líder dos judeus messiânicos, Tiago, o irmão de Jesus (At 15:13). Mas no mesmo tempo mandou que os gentios respeitassem certos pontos sensíveis na área litúrgica para não causar escândalo aos cristãos judeus que continuaram observar essas leis (At 15:28,29; 21:18; cf L3:3c). Apesar destas decisões sábias, tomadas sob a orientação reconhecida do Espírito Santo (At 15:28), o problema estourou uns sete anos depois no interior da Ásia Menor, levando o Paulo a escrever (provavelmente de Éfeso, na sua terceira viagem missionária) sua carta aos Gálatas contra essa doutrina dos judaizantes. O legalismo, porém não morreu, e nunca morre até o último dia da história, pois, por natureza caída, pensamos de conseguir a nossa salvação por merecimento, por nossas próprias boas obras, seja de tipo judaico, pagão, pelagiano, etc. 


e) Diaconia. Mas abusus non tollit usum, o abuso não abole o uso. Boas obras brotam de uma fé viva no Senhor como uma profunda gratidão pela salvação da perdição (Catecismo de  Heidelberg 1). E, de fato a igreja primitiva era conhecida por suas boas obras, por sua diaconia. Até organizou-se uma comissão diaconal especial para isto, porque o angariar, administrar e compartilhar das ofertas para os necessitados tinha ficado demais para os apóstolos que inicialmente receberam as doações colocadas aos seus pés (At 4:35,37; 5:2; 6:3; L7:1a). Entre os necessitados (Mt 26:11) estavam viúvas e órfãos, pobres por definição (Tg 1:27). Os idosos, os doentes (inclusive durante epidemias), os prisioneiros, todos eles eram lembrados, de sorte que até o próprio imperador Marco Aurélio (160) admirou-se desta disposição dos cristãos de ajudar seus semelhantes, até na mais desprezada tarefa de coveiro . É que cristãos entendiam o que é sofrer. Muitas vezes eram senhoras que estavam ativas nessa tarefa delicada e difícil de assistência social. Umas delas são conhecidas até por nome, como a Dona Dorcas em Lida (At 9:36) e Febe servindo numa igreja perto de Corinto (Rm 16:1). Esta senhora é designada até como "diaconisa", o que não é de estranhar desde que o diaconato não era considerado um ofício de governo (1Tm 2:12). Especialmente viuvas mais idosas podiam ser eleitas para esta tarefa (1Tm 5:9,10), e no leste tem tido diaconisas durante os três primeiros séculos. 


f) Comunismo? Ainda uma observação sobre o suposto comunismo na igreja primitiva de Jerusalém (At 2:44,45; 4:32). Sem dúvida era um tipo deste sistema social, mas muito diferente daquilo  visto durante o século xx. E cujos  textos são usados por esta ideologia. Pois o livro de Atos mostra que a propriedade privada não foi abolida, mas que era um movimento voluntário, espontâneo. Pedro disse claramente a Ananias que não havia necessidade nenhuma de entregar seu dinheiro à igreja (At 5:4). Não era uma organização social permanente, e de alguma forma possa ter drenado a igreja de recursos  porque, depois, Paulo precisava levantar uma coleta para a própria igreja-mãe (Gl 2:10). Mas em si, deve ter sido uma época muito edificante como expressão de amor fraternal depois do maior avivamento que a história conheceu, o derramamento do próprio Espírito Santo! 


g) Ofertas. Quanto às contribuições, no leste geralmente separava-se o dízimo para a obra do Senhor, seguindo o costume judaico e orienteção no Didaquê; no oeste eram ofertas voluntárias (Mt 23:23; 2Co 9:7). Normalmente as contribuições (em dinheiro ou natura) foram trazidas à congregação aos domingos e colocadas na mesa (depois chamada altar). O líder as ofereceria a Deus e então eram entregues aos diáconos para distribuição entre os necessitados (2Co 8:14), mas também para pagamento de certos obreiros que dedicavam grande parte do seu tempo à obra do Senhor (1Ti 5:17, “honra dupla” pode significar remuneração dobrada). Também evangelistas itinerantes recebiam ajuda financeira da igreja como mostra as freqüentes referências ao "enviar, encaminhar" (pro-pempein) em Atos e nas cartas (1Co 16:11; Tt 3:13). 


2. Segundo século


a) Legalismo gentilizante. A igreja continuou evangelizando e andando na verdade, no temor do Senhor (2Jo 4; 3Jo 4), e a primeira ordem eclesiástica ou manual catequético conhecido, o Didaquê deu orientações inclusive sobre oração e jejum. Entretanto, por fora, as igrejas locais sempre viviam sob ameaça de perseguições repentinas, e, por dentro havia, constantemente, o problema de idéias e, às vezes, de ensinamentos que fugiam da Palavra de Deus. Pois, como a igreja do primeiro século tinha de se defender contra um legalismo judaico, assim no segundo século havia problemas no lado gentil. 


(Nào querendo ter problemas na sua igreja, peça a sua transferência para o céu hoje. Quem não quer ter problemas com filhos, nunca devia tê-los. Mas quem tiver filhos, considere as dificuldades somente como problemas da bênção e, em primeiro lugar, dá graças pela bênção e depois peça orientação como ajudar resolver esse problema de melhor maneira construtiva e na paz do Senhor.) 


Assim, na igreja, o ganhar pagãos para o Salvador do mundo trouxe problemas específicos para dentro da família de Deus, e os presbíteros oravam ao Supremo Pastor como podiam ajudar melhor essas ovelhas. Qual o problema desta vez? Era outro tipo de legalismo. Os "judaizantes" exigiam a observância da lei litúrgica; era um tipo de legalismo positivo, acrescentando algo. O "legalismo gentilizante" era um tipo de legalismo negativo que procurava tirar certas coisas. Era um legalismo ascético, que proibia certas comidas (carne e vinho) e coisas boas da vida criadas por Deus, até o matrimônio (Cl 2:21-23; 1 Tm 4:1-6; ascese do grego askesis, treino; enkrateia, continentia). Pouco a pouco surgiu uma moralidade dupla, que depois seria chamada mandata et consilia. Para todos os cristãos haviam os mandamentos (mandata), como não contrair segundas núpcias (assim Atenágoras, +180, apesar de Rm 7:3; 1Tm 3:2 proibe a bigamia, não segundas núpcias). Para os voluntários haviam os conselhos (consilia evangelica) que, por seguí-los voluntariamente, acumulariam boas obras, como escreveu Hermas, o irmão do bispo Pio I de Roma (+150), no seu Pastor de Hermas, um apocalipse em que um anjo disfarçado de pastor de ovelhas fala sobre a penitência. Era querer ser mais sábio do que Deus, mais santo do que o Santíssimo. Deve ter soado como uma mensagem vindo do céu, porém, de fato era uma cilada espiritual (Gl 1:8).


b) Gnosticismo. Mas porque esse tipo de legalismo? Se o abster-se de certas coisas permitidas tem como alvo ser mais forte na luta contra as coisas proibidas, dá para entender, embora que há outros meios para isto. Mas as forças propulsoras eram outras, tanto de lado de fora da igreja como de dentro. Fato é que entre os conversos pagãos havia uma corrente forte de considerar as coisas materiais como pecaminosas e por isso deviam ser rejeitadas (1Tm 4:1-5). Esta pressão aumentou durante o segundo século devido à crescente influência dos cultos místicos e das correntes filosóficas, mormente o gnosticismo neoplatônico. Temos nos encontrado com este pensamento espiritualista, mas pagão, várias vezes e em práticamente todas as pautas. E nem podia ser diferente, pois estava no ar (L2:4f,g). Num dia infeliz um semi-deus, o Demiurgo, teria criado a terra e os espíritos humanos agora se encontram encarcerados na matéria. Precisam escapar pelo caminho do conhecimento da salvação (gnôsis). Um dos meios mais certos seria a ascese, pois será que não é verdade que quanto mais espiritual, tanto mais santo; quanto mais material, tanto mais pecador? 


Nós mesmos somos tão influenciados ainda por este pensamento que, à primeira vista, muitos concordariam. De fato, parece muito bonito, mas engana. Uma simples pergunta pode ajudar a descobrir o problema neste raciocínio. Pergunta: "Quantas gramas pesa o diabo?" Resposta: "O diabo não pesa nada pois é espírito". Percebeu o problema? Não dá para equacionar "espírito" com santidade, nem "matéria" com pecado. Mas os pagãos que foram se convertendo trouxeram a sua bagagem cultural para dentro da igreja e conseqüentemente também seu pensamento herético que não tinha sido corrigido constantemente pela revelação divina que foi Deus mesmo que criou o céu e a terra. Como, então, matéria poderia ser idêntica ao pecado? 


Não é de estranhar que esse pensamento pagão teve um reflexo profundo sobre o comportamento do dia a dia. Por um lado levava a um andar muito austero, com rigor ascético e tinha uma aparência de sabedoria, de humildade e de temor de Deus (Cl 2:23). Por outro lado levava a um liberalismo desenfreiado, pois se a matéria em si não vale nada, nem me toque e posso me comportar como quiser. Não era simplesmente tropeçar sem querer, mas era um ensino, um sistema de pensamento atrás de um comportamento moral completamente solto. Era a doutrina dos nicolaitas, da profetisa Jesebel e do velho Balaão. Já era assim no fim do primeiro século (Ap 2:14,15,20), e aumentou durante as próximas décadas. 


c) Montanismo. Uns doze grupos gnósticos sairam da igreja (1Jo 2:19) onde tinham sido combatido sistematicamente. Entretanto, essa moralidade ascética ficou parcialmente incorporada no pensamento cristão, por parecer tão santa, especialmente quando também o movimento montanista na província de Frígia (150) começou a enfatizar a abstinência por causa da volta iminente de Cristo. Sínodos na Ásia Menor combateram a "heresia frígia". O montanismo se espalhou, sem dúvida, também como reação contra um certo relaxamento moral na igreja. Ganhou muitos adeptos, inclusive no norte da África na região de Cartago onde o próprio Tertuliano aderiu a esse movimento, que nesta região constituia um grupo fora do igreja. Havia muitos mártires entre eles, em parte pela tendência de até procurar o martírio. A Perpétua e a Felícitas estavam entre eles. O ascetismo chegou a ser tão embutido na ética cristã, que era até uma disciplina separada na escola missionária de Pantenus na Alexandria no Egito (200). 


d) Pecados (im)perdoáveis. Durante o segundo século surgiu ainda a distinção entre pecados perdoáveis e imperdoáveis. Todas as transgressões podiam ser perdoadas pela igreja depois de um período de disciplina, a "segunda penitência", mas havia três pecados imperdoáveis. Eram a idolatria, a licenciosidade e o assassínio. Também a idolatria, quer dizer, inclusive o sacrificar ao imperador durante a perseguição. A disciplina tinha sido a exclusão do transgressor, porém, ficando ligado à congregação pelo fio tênue de penitente permanente no átrio da igreja. Os outros pecados podiam ser perdoados depois da "segunda penitência". O perdão podia ser obtido por três vias: um profeta podia declará-lo perdoado, ou o pecador podia livrar-se da culpa por boas obras como esmolas ou martírio (o batismo de sangue). O caminho normal era o de Mateus 18:18 por uma confissão pública do pecador, intercessão por ele e um tempo de penitência. Mas antes da ano 180 não havia muitas normas fixas ainda.


3. Terceiro século


a) Disciplina. Não precisamos anotar muitas mudanças na pauta "Vida" durante o terceiro século. Muitos foram ganhos para Cristo durante as décadas de relativa calmaria nas perseguições (200-250 e 260-300). Foram períodos de grandes bênçãos neste sentido, mas ocorreu um certo relaxamento moral nas igrejas e na disciplina. Duas transgressões foram tiradas da categoria de "pecados imperdoáveis", a licenciosidade e a idolatria, sobrando somente o assassínio.


b) Licenciosidade. A controvérsia sobre a readmissão em caso de licenciosidade ocorreu durante o bispado de Calixto de Roma (217). Calixto era um escravo liberto que chegou a ser bispo na capital do império. Ele comparava a igreja com a arca de Noé em que havia animais puros e impuros. E ela é como uma lavoura onde crescem trigo e ervas daninhas. Por isso abriu a possibilidade de restauração para os que se arrependeram de imoralidade. Não concordou uma minoria da igreja romana sob a liderança do erudito Hipólito, que foi apoiado por Tertuliano, que repreendeu o Calixto, zombando dele porque estava bancando o pontifex maximus (supremo sacerdote) e episcopus episcoporum (bispo dos bispos)! Calixto chegou a excomungar o Hipólito!. O cisma somente terminou quando Hipólito foi banido durante a perseguição em 235.

Outra reação contra o relaxamento foi a crescente tendência ascética e do número de pessoas que viviam como celibatários. Foi estimulado porque o pensamento espiritualista gnóstico não tinha sido vencido dentro da igreja.


c) Idolatria. Outra controvérsia mais severa foi a sobre a idolatria. As perseguições deste século, curtas mas intensas e generalizadas durante os imperadores Décio (250) e Diocleciano (300; L5:4c) colocaram a questão da disciplina eclesiástica e do perdão no centro da atenção. Claro que havia existido sempre a pergunta o que se devia fazer com cristãos que haviam negado a Cristo na hora do perigo mas queriam se reconciliar depois. Porém, desta vez foi um problema generalizado. As extensas e violentas perseguições levaram muitas pessoas a colocar uns grãos de incenso sobre o altar imperial. Outros entregaram uns rolos da Palavra de Deus ou subornaram um fiscal para adquerir um certificado negativo (libellus; L5:4c; Cairns pag. 75). Os que cederam à perseguição eram lapsi (os que se deslisaram); aqueles que entregaram um livro sagrado eram traditores (os entregadores). Às vezes tinham comprado seu libellus ou simplesmente entregue um rolo qualquer de um autor grego ou romano a um fiscal amigo para ser lançado na fogueira, mas assim mesmo, não tinham sido fieis. 


d) Depois da perseguição de Décio (250) que causou muitíssimos lapsi, a disciplina de penetência foi permitida tanbém a esses. A decisão não foi fácil e vários sínodos trataram do assunto, mas finalmente concordaram que lapsi podiam ser readmitidos na igreja, mas somente depois de um longo período de arrependimento, e que não mais haveria readmissão pela palavra daqueles que sofreram nas perseguições. Foi o bispo Cipriano que defendeu esta readmissão no seu tratado De lapsis. Mas um grupo sob a liderança de Novaciano, um aluno de Tertuliano, não concordou e foi até excluido. Os "novacianos" (ou katharoi, os puros) continuaram até o sétimo século. 


e) Depois da pior perseguição por Diocleciano (300) a história se repetiu. Os muito lapsi e traditores causaram muita discussão sobre a disciplina. A tendência geral era de readmití-los integralmente depois de um arrependimento real e uma severa disciplina. De novo, nem todos concordaram, e neste ponto também, a história se repetiu. Os nomes mudaram mas as tendências eram as mesmas. Desta vez, no Egito, foram os seguidores de Melício, chamados "melicianos" (como depois o presbítero Ário); e na província africana ao redor de Cartago os partidários de Donato. Aí ocorreu até uma cisão em que os "donatistas" constituiram uma grande denominação independente com normas mais severas (311-411).


f) O resultado destas controvérsias sobre a readmissão em caso de imoralidade e idolatria foi que as normas de disciplina nas igrejas foram mais homogêneas, mas não houve unificação nos graus e tempos de penitência. Na Ásia Menor havia quatro graus no caminho da penitência: chorar (no pátio da igreja), depois ouvir (readmitido a ouvir a pregação), ajoelhar (readmitido a oração) e observar (como ouvinte da eucaristia).


d) Credenda et agenda. Finalmente observamos alguns pontos importantes. Percebemos que rupturas eclesiásticas nem sempre ocorrem somente por causa da doutrina mas também devido a diferenças profundas sobre questões éticas. Ambas, a doutrina e a ética não são simplesmente disciplinas descriptivas sobre o que se pensa e faz, mas, sim, normativas porque estudam o que a Palavra de Deus nos diz sobre credenda et agenda, o que deve ser crido e "agido", sobre fé e andar. 


Por outro lado temos de observar que, às vezes, há um certo desenvolvimento na interpretação do que é "santo", e requerido por Deus. A igreja tinha de retroceder na questão de "pecados imperdoáveis", porque ela mesma, num zelo correto, tinha exigido demais, se esquecendo na prática que o próprio apóstolo Pedro foi readmitido integralmente, até ao apostolado. Tinha descido três degraus, e tinha de subir três degraus; não foi colocado por cima dos seus irmãos, mas voltou ao nível anterior (Jo 21:15-17).


Além disto percebemos várias vezes que, no decorrer do tempo, os nomes mudam mas as tendências permanecem. Pois havia neste período os montanistas avivalistas semelhantes aos atuais "adventistas da promessa", havia "puritanos" como os novacianos e donatistas, havia "liberais" como os gnósticos, etc. 

Mas notamos especialmente que, através de todas essas turbulências e tensões, por dentro e por fora, o Senhor preservou a Sua igreja e que as portas do inferno não prevaleceram contra ela, conforme a Sua promessa (Mt 16:18).


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Leitura obrigatória: Cairns cap. 5.